CARLOS HEITOR CONY
A arte é um ofício
A arte é um ofício
ÀS VEZES perguntam sobre o que ando escrevendo. Para começar, não ando escrevendo. Quando sou obrigado a escrever, a primeira coisa que faço é não andar: fico parado diante do computador. Há que ganhar o leite das crianças e o meu próprio leite, nada mais do que isso.
Houve tempo em que cheguei a transar com roteiros, mas em ritmo amador, quebrando galhos aqui e ali, a pedido de produtores amigos.
Temos bons profissionais no gênero, gente escolada capaz de manter uma história por meses. Nunca foi o meu caso, meu estro curto e fatigado, embora roteiros de cinema e novelas tenham muitas vezes uma autoria coletiva. Nem sempre o autor é um Moisés que sobe a montanha, enfrenta a sarça ardente e volta com as tábuas da lei. Não é bem assim. A função e o mérito de escrever roteiros geralmente são coletivos -e bota coletivo nisso.
Tudo nasce de uma ideia. Alguns anos atrás, fui apresentado a Robert Wise. Ele estava dando uma entrevista a propósito de dois de seus sucessos, "The Sound of Music" e "West Side Story".
Perguntaram-lhe o que era mais importante num filme, e ele respondeu: "A ideia". O resto era resto. E contou uma historinha que revela como as coisas se passam num grande estúdio.
O produtor acorda e telefona para um banqueiro: "Você topa financiar um filme com Penélope Cruz no papel de carcereira de uma prisão de mulheres lésbicas? Uma delas é a Natalie Portman. O projeto vai custar US$ 120 milhões". O banqueiro topou.
Em seguida, o produtor liga para Penélope Cruz e Natalie Portman, que haviam pedido US$ 1 milhão para fazer qualquer filme. O produtor foi direto: "Vocês topam fazer um filme em que Penélope é carcereira e Natalia é uma das lésbicas encarceradas? Dois milhões para cada uma!".
As duas engasgaram, mas toparam. O produtor então telefona para seu assistente: "Tá tudo arranjado, já contratei Penélope Cruz e Natalie Portman por US$ 2 milhões cada uma, elas ficaram entusiasmadas. Agora, arranje um idiota que escreva esta história por US$ 5.000".
Pode parecer piada, mas as coisas funcionam assim mesmo. Um filme, uma produção teatral ou uma telenovela é um empreendimento econômico-cultural que exige um colegiado para tomar as decisões finais. Federico Fellini, que contagia com sua personalidade tudo o que faz, mesmo em seus filmes mais "pessoais" trabalhou com seis a oito roteiristas, entre os quais ele próprio.
Ingmar Bergman desde a mocidade montava a "A Flauta Mágica" nos teatros provincianos da Suécia. Sua estreia profissional foi em Estocolmo, no teatro Real, montando justamente a ópera de Mozart.
Depois foi fazer filmes, personalíssimos também, e já na virada dos 60 anos, decidiu filmar a ópera mozartiana. Está lá nos créditos do filme: são seis roteiristas (entre os quais o próprio Bergman) que trabalharam um roteiro velho de quase 200 anos, julgado em dois séculos como uma das mais fascinantes histórias do palco.
Pouco a pouco -é bom que se diga- começa a mudar essa mentalidade autoral. A telenovela -como o roteiro cinematográfico- é obra coletiva, de muitas cabeças e mãos, mais as mãos do que as cabeças.
Revi outro dia, na televisão, "The Big Sleep", um filmezinho meio idiota, com Humphrey Bogart no papel do detetive Marlowe. Os jornais noticiavam que o roteiro era de William Faulkner e fui conferir. Era. Só que havia mais três roteiristas ao lado de Faulkner. E, na certa, o que há de melhor no filme (o diálogo) não é de Faulkner: é exemplarmente antifaulkneriano.
O exemplo basta. William Faulkner foi um dos maiores romancistas do século 20, o maior fabulador do seu tempo. Proust, Joyce e Kafka foram mais espetaculares, mas a capacidade de criar, inventar a fábula (essência e função do romancista), teve nele a sua maior expressão.
Antes mesmo de ganhar o Nobel, Faulkner experimentou Hollywood, fez dois ou três roteiros que resultaram em filmes medíocres.
Na televisão, Faulkner teria de ser reescrito por cinco, seis roteiristas do ofício -gente humilde, que ganha pouco, mas pode transformar os versos do deputado Tiririca em sucesso e prêmio da Academia.