Documentário acompanha um ano na vida de Marina Abramovic
Aos 65 anos, artista sérvia segue testando os limites de seu corpo
André Miranda
BERLIM - Marina Abramovic já ficou nua; riscou um pentagrama em volta de seu umbigo com uma faca; permitiu que as pessoas usassem objetos como bem entendessem em seu corpo durante seis horas; ficou nua de novo, dessa vez deitada com um esqueleto; andou por 2.500 quilômetros da Muralha da China para dar fim a um relacionamento; passou três meses indo a um museu para simplesmente se sentar numa cadeira durante todo o dia e observar quem se sentasse em frente a ela; e se despiu por três, quatro, cinco, quantas vezes fosse preciso para sua obra.
Todos os trabalhos que a tornaram reconhecida no mundo como a "avó das performances" foram realizados em nome da arte, a mesma arte performática cujo encontro com o cinema a trouxe para a 62 edição do Festival de Berlim.
A artista, nascida em 1946 em Belgrado, na Sérvia (à época, parte da Iugoslávia), está na Berlinale para as sessões do documentário "Marina Abramovic — The artist is present" ("A artista está presente"), de Mathew Akers, incluído na mostra Panorama.
O filme revela detalhes da rotina e das motivações de seu trabalho, tendo como ponto de partida a famosa exposição "The artist is present", que Marina apresentou no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York em 2010. Foi quando se sentou na cadeira para se comunicar sem palavras com os espectadores, além de reunir outros artistas para recriar algumas de suas apresentações mais famosas, como a "Imponderabilia", de 1977, em que ela e seu então namorado, o artista alemão Ulay, ficavam nus numa porta, para que as pessoas passassem por entre eles.
Anteontem, num restaurante de Berlim, Marina conversou com O GLOBO sobre o filme, Ulay, a verdadeira performance e as dúzias de viagens que faz ao Brasil desde o fim dos anos 1980.
O GLOBO: A senhora estava no Brasil há pouco tempo, não?
MARINA ABROMOVIĆ: Na verdade, eu vim do Brasil para cá, cheguei ontem (quinta-feira).E estou com um problema sério porque não tenho roupas para este frio que está fazendo em Berlim. No Brasil a temperatura era quarenta graus. Agora mal consigo sair na rua (risos).
- E o que a senhora fazia no Brasil?
Eu tenho uma longa história com o Brasil. Depois de terminar a performance em que andei na Muralha da China, em 1987, eu passei a me interessar pelas relações emocionais e físicas das pedras, da terra em que eu caminhei. O cobre, o ferro, os minerais, tudo isso traz uma sensação diferente. E eu queria que o público compreendesse esse tipo de experiência, mas havia um problema: na Muralha da China, foi a primeira vez que minha performance não foi visível para as pessoas. Então eu criei um novo corpo de trabalho que envolvia objetos transitórios. Aí, em 1989, fui ao Brasil para visitar suas minas. Fui para Serra Pelada, Minas Gerais, Santa Catarina, Marabá, a Amazônia, vários lugares, atrás de pedras que me permitiriam criar objetos de interação com o público. De 1989 a 1995, eu fui muitas vezes ao Brasil.
- Desta vez a senhora foi novamente atrás das pedras?
Sim. Depois da retrospectiva no MoMA (o Museu de Arte Moderna de Nova York), eu quis voltar àqueles minerais. Acho que hoje entendo mais e mais a energia que vem deles. Então reuni 35 caixas de pedras e as enviei para um museu em Milão. Elas farão parte de uma nova performance em que estou trabalhando. A ideia é que parte do público faça uma performance e a outra parte veja a performance dos outros. É uma proposta educativa para que as pessoas compreendam o que a arte performática realmente significa. Eu estou construindo objetos para as três posições básicas do ser humano: sentado, deitado e de pé. Já construímos, por exemplo, cadeiras bem altas em que os pés não tocam o chão, para dar um sensação diferente da gravidade, e que vão ficar por cima de pedras preciosas diversas. Cada pedra vai gerar um campo energético e oferecer um significado para quem estiver ali.
- Mas, apesar de ter ido tantas vezes ao Brasil, a senhora nunca se apresentou lá.
Não, é verdade. Mas ouvi dizer que a peça que eu fiz com Robert Wilson (dramaturgo americano que lançou em julho do ano passado, num festival de Manchester, o espetáculo “The life and death of Marina Abramović”, com participação da própria) vai ao Rio no próximo ano, talvez também para São Paulo. Mas não sei muitos detalhes sobre isso.
- A senhora sempre pareceu muito empenhada em mostrar às pessoas o significado da performance. É esta também a ideia do documentário que está sendo exibido em Berlim?
Este filme foi muito importante para mim. E eu radicalizei. Aceitei ter um microfone atrás de mim durante um ano inteiro. Eu não tinha privacidade, e é muito difícil você se expor completamente desta maneira. O sujeito da câmera tinha a chave do meu apartamento, aparecia às 6h e esperava eu acordar com a câmera no meu rosto. O ponto era mostrar para os espectadores como é séria e difícil a preparação para uma performance. Não é um entretenimento de merda como aquelas pequenas exibições em museus para as quais você é convidado o tempo todo. Performance é um negócio muito sério. Por isso, espero que o filme ajude as pessoas a entender o significado da performance, não apenas do meu trabalho.
- É por isso também que, diferentemente de outros artistas, a senhora aceita que suas performances sejam reproduzidas?
A performance é um arte temporal. Então, se não houver a reporformance, ela vai morrer. Vai virar uma foto morta num livro. É melhor que alguém repita uma performance do que não haja performance alguma. Mas meus colegas pensam diferente. Eles dizem que a performance é uma obra original que não pode ser reproduzida. Eles nunca dão os direitos para que outros façam. No meu caso, eu abro meu trabalho para jovens artistas performáticos, acho isso muito importante. Mas abro apenas os trabalhos que não tragam algum risco físico, porque não tenho como controlar as possibilidades de cada um.
- Qual a importância do público para sua performance? Sua presença de alguma forma transmite força para sua arte?
O público é tudo para mim. Mesmo se eu estiver numa palestra e perceber que alguém se levantou para ir no banheiro, eu fico prestando atenção até ele voltar. Se ele não voltar, para mim quer dizer que eu falhei. Cada uma das pessoas na plateia cria um diálogo de energia comigo. Eu pego a energia que vem do público, a transformo e a devolvo. É assim meu trabalho.
- No filme, há uma cena em que uma moça tenta ficar nua antes de se sentar na sua frente no MoMA, mas é impedida e removida pelos seguranças. O que você pensou naquele momento?
Foi tudo muito rápido, eu mal pude ver o que aconteceu. A questão é que as regras para aquela performance eram bem rígidas. Você não tinha permissão para fazer sua própria performance. Deveria apenas se sentar na minha frente pelo tempo que quisesse e interagir com os olhos. Era esta a ideia. Aconteceu de muitos artistas, não apenas aquela moça, tentarem ser percebidos ali no MoMA. É difícil conseguir exposição no mundo das artes, então qualquer oportunidade deve ser utilizada para mostrar seu trabalho. Eu entendo essa necessidade, mas naquele caso havia regras, e essas deveriam ser seguidas. Teve um cara que se vestiu igual a mim e propôs casamento. Foi meio louco, para muitos aquele momento era como se estivessem num palco.
- Hoje, há uma ideia de que qualquer um pode fazer uma arte performática. Isso aparece muito no teatro, por exemplo.
Antes, a performance e o teatro eram duas artes bem diferentes. Mas, hoje, os diretores de teatro levam tantas performances sérias para os palcos que pode-se dizer que há uma mistura. Se você pensar, por exemplo, em Pina Bausch e outros artistas incríveis, o trabalho deles em utilizar performances no palco é bastante interessante. A boa performance tem muita força para estar em qualquer lugar, no teatro, na dança, na moda ou cinema.
- Mas é mais do que no teatro. Há pessoas protestando nas ruas que tratam o que fazem como performance. Há gente nas redes sociais que age como se aquilo fosse uma arte performática. É a mesma coisa?
Não. Tudo depende do contexto. As redes sociais ou as performances nas ruas têm contextos diferentes da arte. Às vezes é político, às vezes é pessoal. Se um cara faz um pão, por mais que ele faça o melhor pão do mundo, ainda assim ele não será um artista. Será um bom padeiro. Mas se você faz um pão num galeria, aí sim você estará fazendo arte. O contexto muda tudo. Nos anos 1970, todo mundo dizia que fazia performance, mas era na verdade um monte de merda. Assistir à verdadeira boa performance é uma experiência que vai mudar sua vida.
- No documentário, Ulay, seu namorado e parceiro de performances por quase uma década, fala em entrevista sobre o fim do relacionamento de vocês, de como ele engravidou a tradutora que os ajudava nas negociações para a performance na Muralha da China. Como a senhora lidou com o fato na época?
A tradutora acabou se tornando esposa dele, mas eles já se separaram. Aquela não foi a única vez que Ulay fez aquilo. Nós ficamos nove anos juntos, e os últimos três anos foram bastante ruins. Eu o convidei para a retrospectiva no MoMA porque muito daqueles trabalhos nós havíamos criados juntos. Mas não somos amigos. Temos uma relação apenas ok. E Ulay não está bem, está com câncer. Ela está em Berlim e fiquei muito chocada com sua aparência ao vê-lo hoje mais cedo.
- A senhora, por sua vez, está com 65 anos, continua fazendo performances que exigem muito da parte física e aparenta ter pelos menos 15 anos a menos. De onde vem toda essa energia?
Uma das minhas avós morreu com 103, a outra com 116 anos. Eu sou uma espécie de soldada. Eu não bebo, nunca fumo, não uso drogas. Só faço exercícios, trabalho e vivo.
- Talvez isso tenha vindo da disciplina imposta por seus pais, ambos heróis de guerra na antiga Iugoslávia. Como pessoas como eles lidavam quando você começou a se apresentar?
Meus pais ouviam críticas nas reuniões do Partido Comunista, sobre que tipo de educação eles tinham me dado. E eles deram uma educação muito rígida mesmo, uma disciplina militar. Minha mãe ficava bastante irritada com as performances. Quando minha mãe morreu, eu lembro de ter ido a seu apartamento olhar suas coisas e ter achado um livro sobre meu trabalho em que ela tinha rasgado todas as páginas em que eu aparecia nua. Ela editou o livro para mostrar para os vizinhos, tirou umas 20 páginas.
- A senhora se imagina velhinha, com mais de 100 anos como suas avós, ainda fazendo performances?
Eu nunca vou parar. Só vou parar quando morrer. Eu quero muito descobrir os limites do meu corpo, quero saber o que vai acontecer. O Merce Cunningham (coreógrafo de dança americano, morto em 2009, aos 90 anos) sofria de uma artrite terrível e ainda se apresentava com as mãos e os joelhos. Quero isso para minha vida.