Wando sim, Spinetta e Tàpies não
Sylvia Colombo
O Brasil anda com a bola toda na opinião pública internacional. Com razão, principalmente no que diz respeito a aspectos políticos e econômicos. Afinal, já somos a sexta economia do mundo, superando o Reino Unido, e exibimos nosso tradicional charme como principal atrativo dos megaeventos da Copa do Mundo-2014 e da Olimpíada-2016.
Falta muito, porém, para deixarmos nosso provincianismo cultural para trás. O fato de termos uma tradição musical popular fortíssima e vibrante teve a desafortunada contrapartida de fazer com que conheçamos muito pouco a música popular de outros países --exceção feita à produção anglo-saxã, que penetra em muito devido à inegável força dessa indústria cultural.
No cinema e na literatura, há mais variedade. Mas o sucesso da produção de outros países depende, em geral, de selos de qualidade vindos de centros como Reino Unido, França ou EUA.
Já o teatro e as artes plásticas são para poucos entendidos. Nesse aspecto, influencia nosso péssimo desempenho em educação, comparado com outros países da região. Em geral, o brasileiro médio conhece pouco ou simplesmente não se interessa por esses assuntos de um modo geral.
Pensei muito nesse tema na última semana, por conta da triste partida de alguns artistas. O cantor popular brasileiro Wando, o pintor espanhol Antoni Tàpies e o músico argentino Luis Alberto Spinetta.
Wando foi celebrado pelas redes sociais e pela imprensa de um modo geral de uma forma como nunca foi em vida. Todo mundo achou "cool" dizer que curtia sua música, de qualidade artística contestável. Foi festejado e alçado a um posto que jamais ocupou de verdade na nossa música popular. Wando, com todo o respeito, não foi um Caetano Veloso, um Gilberto Gil, nem mesmo um Gonzagão, se quisermos ficar com um exemplo do cancioneiro mais popular.
A comoção nacional e o elogio de seu legado deixam evidente nosso provincianismo. Na mesma semana, morreram também Tàpies e Spinetta, e quase não houve repercussão no mundinho cultural brasileiro.
O catalão Antoni Tàpies era um vanguardista. Morto na idade longeva de 88 anos, conviveu com os grandes nomes das artes plásticas do século 20, como Picasso e Miró. Seu estilo "matérico" tinha influência da cultura oriental, mais especificamente do budismo zen.
A ele está dedicado um dos centros culturais mais belos de Barcelona, a Fundação Tàpies (www.fundaciotapies.org), que possui também biblioteca e está instalada num lindo prédio modernista, passeio obrigatório a visitantes da capital catalã.
Longe de ser um artista conhecido apenas pelo círculo alternativo, Tàpies ganhou prêmios e foi festejado internacionalmente durante toda sua carreira. A indiferença com que a notícia de sua morte foi recebida no Brasil expõe como as artes plásticas são consumidas ainda apenas por uma elite intelectual.
Já a partida de Luis Alberto Spinetta, aos 62, em Buenos Aires , mostra como a fronteira com o país-irmão que deveria ser a Argentina parece ser feita de concreto e protegida por arame farpado. Spinetta era uma espécie de mistura entre Erasmo Carlos e Caetano Veloso, em termos de peso na música local. Precursor do rock nacional, foi um artista erudito e sensível que opinava e influenciava nos debates da sociedade.
Sua carreira começou no fim dos anos 60 e atravessou várias fases. Conhecido pelo apelido de "flaco", por ser muito magro, criou bandas como Almendra e Spinetta Jade. Recebeu influências do punk e da psicodelia dos anos 70, do pop dos anos 80 e do jazz. Entre seus principais sucessos estão "Muchacha (Ojos de Papel)" e "Plegaria para un Niño Dormido". Suas letras eram sofisticadas e poéticas, seu rock era criativo e vigoroso.
A comoção que causou sua morte atravessou gerações, da presidente da nação aos garotos, foi manchete dos principais jornais, enquanto seus clipes e suas músicas foram revisitados pelas TVs e rádios por vários dias. Uma multidão foi à sua despedida. Políticos, intelectuais, artistas e gente comum fizeram do "#chauflaco" um "trending topic".
O mais importante filósofo e ensaísta argentino, Santiago Kovadloff, disse sobre sua morte: "Há um momento em que a música popular se encontra plenamente com a poesia, não somente no campo do folclore, mas também na composição urbana. No Brasil, Chico Buarque foi uma de suas máximas figuras e, entre nós, Spinetta representou algo muito similar."
Em nosso país, posso estar enganada, mas só vi uma referência à morte de Spinetta no Twitter do Ed Motta.
Sim, perder Wando, o rei das calcinhas, é uma notícia triste e um assunto suculento para a audiência na rede em tempos de internet. Mas observar a valorização do legado desse músico de segundo time e ao mesmo tempo o provincianismo brasileiro diante da perda de artistas que tiveram muito mais a dizer, como Tàpies e Spinetta, é chocante.
Tomara que esse "Brasil do futuro" que surge agora saiba abrir seus horizontes e consumir a produção de variadas origens, pelo menos na mesma proporção em que exporta a sua.
Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história.