quinta-feira, abril 26, 2007

o pintor e o fim do limbo - marcos augusto gonçalves - folha de são paulo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

O pintor e o fim do limbo

Felizmente ainda temos o Homem-Aranha, o Super-Homem, a batcaverna, o Arctic Monkeys e o Saci

DESCIA a rampa do pavilhão da Bienal quando o pintor veio em minha direção. Geração 60, estiloso, idéias longas, cabelos já nem tanto. Abraçou-me e logo bradou: "Estou me sentindo na Idade Média".

Estávamos na SP Arte, a movimentada feira paulistana de galerias, e relacionei o comentário a essa manifestação arquetípica do mercado, que florescia nos idos medievais. Mas, como tudo ali na feira me parecia, na verdade, um reflexo periférico (como diria dona Rosa, minha saudosa professora comunista) do admirável capitalismo novo em que vivemos, retruquei em irônico chavão economês: "Acho que está mais para excesso de liquidez".

O pintor sorriu e prontamente esclareceu. Não era à feira que se referia. "Não, não estou falando disso aqui, mas da notícia que li no alto da primeira página da Folha: o Vaticano vai acabar com o limbo! Fiquei pensando: será que acordei na Idade Média?" E gargalhou.

Compreensível. Afinal, quando ninguém dava a mínima para o assunto, eis que o Vaticano coloca em dúvida uma crença nascida há 800 anos.

Pensei aliviado: felizmente ainda temos o Homem-Aranha, o Super-Homem, a batcaverna, o Arctic Monkeys e o Saci Pererê. Mas logo fui percebendo que a questão era grave e envolvia uma série de complicações.

Logo imaginei um problema de logística transcendental: como se daria o traslado das almas do limbo para o paraíso? Ou a nova lei só valerá para quem venha a morrer sob ela? Ou não é nada disso: Deus já havia designado que as crianças sem batismo iriam para o céu, mas o clero errou ao dar corda para essa conversa de limbo.

Não sei. A própria igreja admite que "não tem conhecimento absoluto sobre a salvação das crianças não batizadas". Segundo a notícia, "a conclusão a que os 29 membros da comissão chegaram, e que foi ratificada por Bento 16, é justamente a de que, muito possivelmente, a criança morta antes do batizado será salva -vai para o paraíso".

Muito possivelmente.

Se, por um momento, o assunto nos causou a sensação de vivermos no mundo encantado do medievo, logo, o pintor e eu, voltamos à realidade. Tomamos um café e fomos ver obras dessa arte que que há séculos já não é mais produzida sob o manto da religião, rompeu com todos os cânones e agora floresce num mercado em expansão.

Há uma espécie de "sobra" de dinheiro na acumulação financeira. Os super-ricos são cada vez mais numerosos. Uma ínfima parte que dediquem à arte, com ou sem apoio dos governantes, com vistas a coleções privadas ou públicas, já é o bastante para fazer girar esse reluzente mercado.

Não são apenas obras de "clássicos" que atraem a atenção dos colecionadores/investidores. A produção moderna e a mais recente também. E mesmo aqui em nossa festiva e melancólica periferia tropical, que produz arte contemporânea de gente grande, o mercado vai cada vez mais se estruturando - e saindo do limbo.